CÉSAR: A voz que canta seus atravessamentos
Nos últimos anos, Juiz de Fora tem sido cenário para ouvir as histórias de um cantor que, por vestir-se de si próprio, também se veste de coragem. Natural de Manhuaçu – MG, César e sua voz têm, pelos palcos da cidade, cantado seus próprios percalços, a beleza do ordinário e seus atravessamentos.
Chegando a Juiz de Fora em 2016 para cursar Arquitetura e Urbanismo, é em 2020 que César se percebe como artista, e no mesmo ano se lança na carreira musical. Artista autodidata, produz suas canções em casa, com auxílio do celular e seu guarda-roupas como home studio. Para suas composições, ele parte sem se prender a nenhum estilo específico, mas sempre bebendo das suas referências do Soul e da Música Preta Brasileira Contemporânea. Seus temas permeiam pela mesma premissa que o faz cantar, primeiramente o amor, pois como diz Beyoncè na faixa “All Night” do álbum Lemonane “o amor é a maior arma para vencer a guerra causada pela dor”, e ele deve ser celebrado em toda sua plenitude. Atrelado ao amor, para César, está a sua sobrevivência, pois como corpo queer, sua voz ressoa, e foi baseado em suas próprias vivências que sua voz desagua em vários projetos, e um dos mais especial é seu projeto autoral MONOTEMA. É sobre o MONOTEMA, os projetos futuros, a carreira e os sonhos que tive a oportunidade de conversar com o César, o resultado tá na entrevista abaixo!
Bárbara: Vamos começar de forma filosófica: Quem é o César? Conta para gente sobre suas influências. Quem te leva a querer fazer música?
César: Essa é uma pergunta difícil, porque eu acho que eu sou a junção de muitas coisas, muitos sonhos e muitas realizações também. Se eu analisar pelo que me trouxe até aqui, diria que eu sou um multiartista, que canta, compõe, atua, que produz, e que nos últimos anos vem se desenvolvendo no meio artístico de forma totalmente independente, sem patrocínio. Isso fez com que eu fosse adquirindo mais qualidades artísticas dentro desse meio que eu escolhi vivenciar. Sou um artista em construção, que busca no cotidiano e no dia a dia as referências que me impulsionam a criar arte. Então, eu bebo muito das minhas relações afetivas, das experiências de vida que me atravessam enquanto um corpo periférico, preto e queer, e minha música surge dessas experimentações. A vontade de falar sobre meus sentimentos me faz compor e cantar tudo isso, a música surgiu na minha vida como uma forma de expressão genuína do meu ser. Ela me faz existir a partir do momento que eu trago pra foco a narrativa que me perpassa todos os dias, e que por vezes se esbarra na realidade de tantos outros corpos que se veem também nessa lógica, representados e acolhidos. Então, fazer música surge em primeira instância da necessidade pessoal de me expressar no mundo, e depois na vontade de construir narrativas coletivas sobre uma comunidade que por muito tempo foi apagada e é silenciada cotidianamente.
B: Você diz que a sua música se apresenta como “a melhor maneira para vencer a luta contra o ódio”. Quando a música se tornou tão presente na sua vida? E como você descobriu que também gostaria que fosse exatamente dessa forma?
C: A música sempre esteve presente na minha vida, na minha casa o rádio sempre fez parte do nosso cotidiano, assim como a televisão, com as novelas e filmes, então isso me fez ser muito ligado aos sons, as trilhas sonoras. Eu lembro que meu primeiro contato com o microfone foi na catequese, ainda pequeno, e me recordo da sensação de estar ali na frente cantando no coral, era um momento único que eu gostaria de vivenciar mais. Desde então, eu sempre me relacionei com meu canto de forma muito íntima, no meu quarto, com minhas referências musicais, mas só fui entender que era possível ser artista quando em 2016 me mudei para Juiz de Fora. Na graduação eu pude ter contato com amigos que já eram artistas e que me incentivaram muito a trilhar esse caminho. Eu não me via como uma potência, a música por muito tempo foi um hobby, então só quando veio a pandemia, quando o mundo parou, que eu pude mergulhar nessa área da minha vida. Costumo dizer que dentre muitas camadas, foi um período de laboratório criativo pra mim, porque eu pude revisitar minhas canções, pude aprender sobre diferentes formas de produção artística, já que a gente tinha que ficar em isolamento, enfim, foi quando eu percebi que a música era algo muito grande dentro de mim e que eu era um artista em construção. Eu digo que foi ela que me acalentou neste período de incertezas e impossibilidades. Estar vivo sendo um corpo preto, LGBTQIAPN+, afeminado numa sociedade homofóbica e patriarcal é uma dádiva, e poder me expressar cantando essas camadas, podendo conversar por meio dessa arte com outras pessoas, que se identificam com isso, é uma forma de emancipação coletiva, uma forma de lutar contra todo um sistema que não nos quer ali, celebrando nossa potência e nossa cultura.
B: Qual é então objetivo da sua música?
C: No primeiro momento meu objetivo inicial era me expressar, eu conseguia entender meus sentimentos pela escrita. Comecei a escrever em 2018, quando nasceu “O Que Queres de Mim?”, e o meu desejo em escrever era descarregar tudo o que não conseguia expressar em palavras. A gente é ensinado desde cedo a inibir alguns sentimentos pra parecer mais forte, e mais potente, mas quando eu comecei a perceber sobre o que eu escrevia eu pude entender que era muito maior a expressão que todas as letras traduziam. Eu sou muito intenso com meus sentimentos, então a escrita me aliviava, ela me fazia refletir sobre o que eu estava vivenciando naquele momento. Depois, quando eu comecei a compartilhar as canções, os objetivos foram se ampliando, porque eu pude perceber que as canções ultrapassaram esse lugar íntimo que eu expressava, e passou a tomar uma dimensão coletiva, e outras pessoas se viam nessas canções. Então, hoje o objetivo é de conexão com narrativas próximas, com realidades que se encontram, é quebrar a máscara do silêncio, como diz a Conceição Evaristo, por meio da fala, da música e permitir que a gente tenha voz e visibilidade, que a gente exista.
B: Você é definido como um cantor profundamente comprometido em desvendar as histórias do dia-a-dia. Qual seria então o mundo ideal que o César gostaria de cantar?
C: Um mundo onde o afeto fosse prioridade, onde a gente fosse respeitado e tivesse todos os direitos reconhecidos legalmente. Eu canto o que eu vivo, com todos os atravessamentos sociais que nos esbarram, com todas as violações que nos cerca. Mas acho que eu caminho em direção a ideia de um mundo onde as pessoas possam falar sobre suas fragilidades sem medo, reconhecer que ser frágil também é ser potente. Um mundo onde pode ser quem se quer ser.
Sobre o projeto MONOTEMA
B: Esse projeto audiovisual que nasceu para exigir uma existência há muito tempo desatendida pela sociedade. Cada uma das suas músicas traz consigo a sensação de que a figura da “bicha preta e afeminada” é muito mais do que um mero recurso cômico e provoca gatilhos de mudanças. Como é ser atravessado por tudo isso sendo a voz que vai apresentar tais questões ao público?
C: Neste mundo de tanta opressão, falar sobre isso é uma forma de ampliar a visibilidade de uma pauta que por muito tempo foi apagada, foi invisibilizada, de que corpos pretos também amam, também merecem respeito. O afeto humaniza, ele faz com que a gente se reconecte com nosso passado, nossa ancestralidade. Sou um artista que se expressa assim. O MONOTEMA levanta uma temática muito importante que vai esbarrar em várias camadas de violência. Violências contra a existência de uma parcela da população que sempre foi colocada à margem de tudo, até do afeto, de receber amor e cuidado. Eu falo a partir do que me atravessa diretamente, como comentei, eu busco na minha música a cura para o meu caos interno. O MONOTEMA vai traçar um olhar profundo sobre a afetividade, para além da ideia romantizada que nos foi apresentada por anos, a gente mergulha na dor, na ideia da solidão, mas também do autocuidado e do amor próprio. O afeto me possibilita criar novos imaginários que muitas pessoas como eu não tivemos durante nosso trajeto.
B: Além de você, quem mais você acredita que o MONOTEMA possa abranger com suas questões?
C: Acredito que jovens pretos no geral, acho que esse trabalho é uma ponte importante para coisas que estão dentro de nós, conversas que muitas vezes não tivemos ou não imaginamos que sejam possíveis.
B: Antes de terminar, me diga: se você tivesse a opção de se montar como artista e formar um plus do César, quais seriam os artistas que você roubaria os melhores talentos e te formariam como celebridade?
C: Eu amei essa pergunta, claro que a primeira pessoa que me vem na mente é minha referência master, Liniker, que pra mim é uma artista completa, atua, compõe, canta. Eu tive a oportunidade de ver ela de perto duas vezes em momentos diferentes, um no início da carreira com “Remonta” e o show do “Índigo borboleta azul anil” em 2022 e perceber como ela cresceu nesses últimos anos. Liniker é uma combustão de arte preta e eu me espelho muito no trabalho dela. E eu ousaria citar também a UNIQUE, Beyoncé, que é a maior artista que temos no nosso tempo. Ela é completa quando se fala em arte, uma mente brilhante que construiu e continua construindo um legado que pra minha geração é um furacão de referência. Meu sonho é ter as chaves dessas águas.
B:Para concluir, sabemos que você tem se aventurado em diversos palcos. Quais serão seus próximos passos como cantor, ator e compositor?
C: Pois é, o ano de 2023 foi um ano de muitas colheitas. Eu pude rodar um pouco mais com meu projeto autoral e pude me ver mais potente nos palcos do teatro musical também. Não sou de fazer muitos planos, mas eu pretendo terminar de produzir as canções que fazem parte do Monotema em estúdio, com beats e uma pós produção afinada com o que o trabalho merece. E além disso, pretendo continuar me envolvendo com o teatro, não só o musical,me envolver mais nessa arte que eu também adoro fazer. Não posso deixar de pontuar os últimos lançamentos, do projeto “INSANE EM CASA”, que estão disponíveis no youtube e em breve também no Spotify.
Bárbara Oliveira
Revistatrama.artebodoque.com
Fotos: Evelyn Rodrigues, Inês Hebo e Débora Agostini.